Políticas de ação afirmativa de cunho racial no Brasil: uma história que ninguém te contou
Em seu artigo de uma página escrito para o Jornal Mulherio (que circulou entre os anos de 1981 e 1988) no ano de 1982, chamado E a Trabalhadora Negra, Cumé que Fica?, Lélia González (uma das primeiras a aplicar ciência de dados aplicados às desigualdades sociais no Brasil) logo nas primeiras linhas diz: “assim, o 1º de maio tem a ver com 13 de maio”. Denunciando a situação da trabalhadora mulher negra em subalternidade (mesmo em relação às mulheres brancas), nossa célebre autora se pergunta que abolição foi esta que nos deixou basicamente no mesmo lugar, no trabalho doméstico. Porém, esse é um recurso discursivo. Conforme ela mesma (e Carlos Hasenbalg) relembram em outra obra (O Lugar de Negro, lançada no mesmo ano), a medida que o tempo passa, a escravidão perde sua capacidade de explicação da realidade. Duas seriam as principais vias explicativas para as desigualdades entre negros e brancos no país: as práticas racistas do grupo dominante branco e a desigual distribuição geográfica entre as raças.
Muitos anos passaram depois desses escritos, precisamente duas décadas. O fato de 87% das mulheres negras ocuparem empregos manuais melhorou, há mais diversificação da economia, porém, segundo o IPEA (2019) pelo menos 70% das recepcionistas, atendentes, profissionais de limpeza, telemarketing e, principalmente, empregadas domésticas são negras. A distribuição geográfica (dividida entre zonas rurais e urbanas) certamente não é mais a mesma; talvez a atualização dessa desigualdade geográfica seja a oposição entre asfalto e favela. Não é difícil entender essa linha argumentativa. Ao pensar um território de favela pensamos nos piores lugares, com menos acesso à água potável, saneamento básico e energia elétrica. Pensamos em territórios dominados pela violência. E isto não está totalmente errado. Quase nunca pensamos em trabalhadores dignos, cultura pulsante, espaços de reprodução da solidariedade e de pessoas inteligentes e dotadas de direitos. Não coincidentemente esses são lugares de maioria populacional negra.
No Ceará, Mato Grosso e em Minas Gerais temos legítimas representantes desse potencial vivo localizado nas periferias das grandes e pequenas cidades, onde mesmo em situação precária possuem força de viver e estão em busca de um mundo melhor para esses territórios e para o Brasil como um todo. Se há 40 anos as ciências sociais, o Estado, a sociedade civil e as ONGs de modo geral já sabem que esses territórios possuem carências, em 2022 temos clareza que precisamos de mais. Nossas lideranças, assim como Lélia González, sabem disso. Uma dessas mudanças é eleger essas mulheres.
Adriana Geronimo (CE) é cofundadora da FavelAfro, cooperativa de mulheres periféricas do Lagamar. Também integra o Grupo Jovens em Busca de Deus (JBD), a Frente de Luta por Moradia Digna, o Campo Popular do Plano Diretor e o Fórum Popular de Segurança Pública. Tantas frentes de trabalho e militância representam justamente as tantas coisas que esses territórios ainda precisam conquistar.
A candidatura coletiva Mulheres Negras Sim, composta por Tainá Rosa, Lauana Chantal e Juhlia (MG), envolve igualmente diversos campos de luta, partindo da militância anti-homofóbica e anti-machista, trazendo o debate sobre o direito à cidade. As pautas de saúde coletiva e cultura também estão na base da ação social dessas mulheres negras que acreditam na diversidade e que já possuem alguns anos de experiência em pesquisa e em trabalho na política institucional. Lauana Chantal é assessora parlamentar da deputada federal Áurea Carolina, por exemplo.
Professora Graciele (MT) é co-fundadora da Central Única das Favelas de Sinop e sua chamada de campanha é “Mulher é desdobrável. Eu sou!” Essa é uma frase interessante, não?! Pode até mesmo denotar algo no sentido de sermos sobrecarregadas, porém, todas essas mulheres, em muitos sentidos, têm quebrado estereótipos ligados à mulheres negras e faveladas e realizam um projeto sólido no combate às desigualdades, considerando que representar populações subalternizadas é um trabalho multitarefas.
Sem dúvida o legado de Lélia González segue bem representado. Afinal, além de cientista (com doutorado em Antropologia), também organizava-se em movimentos sociais e nos próprios partidos políticos. Mulheres negras e faveladas ocupando espaços políticos representam um incrível potencial revolucionário.